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sexta-feira, 30 de julho de 2010

'O camareiro espião'

Durante a II Grande Guerra, movimentava-se nos meios diplomáticos da capital turca uma misteriosa personagem que, mesmo hoje, não se sabe ao certo se fora coronel da SS ou da Gestapo. Disfarçado na função de adido comercial da Embaixada Alemã, Ludwig Moyzisch era, na realidade, um refinadíssimo espião nazista. Vários anos após o conflito, Moyzisch se retirou para Insbruck, na Áustria, onde publicou um livro de enorme sucesso: OPERAÇÃO CÍCERO, onde revela a forma pela qual havia manipulado Elyesa Bazna, o ambicioso camareiro de Sir Hughe Knatchbull-Hugessen, Embaixador britânico em Ancara, pagando-lhe com dinheiro falso os informes que dele recebia.

Até então, o espião enganado por outro espião, ignorava até mesmo seu codinome: Cícero. Sabia apenas esse fato indisfarçável: o dinheiro falso. Inteirado, afinal, dos detalhes da astuta manobra de que fora vítima, não se deu por achado e publicou outro livro: O ESPIÃO CÍCERO, que pode ser considerado réplica da obra de Moyzisch.Nele não muda propriamente os fatos revelados por Moyzisch que, a essa altura, já não consegue desmentir; mas os apresenta à sua maneira, procurando subtrair-se da fama de espião mais enganado do século para pousar, diante da posteridade, como o espião do século.

Em O CAMAREIRO ESPIÃO, aqui publicado, Guido Gerosa faz um confronto entre as duas versões e servindo-se, ainda, de outras fontes, chega a conclusões que, talvez, seja a verdade definitiva dos fatos.

Quando o homem deslizava imperceptívelmente no quarto, tudo ali era obscuridade e silêncio. Da cama chegava até ele a longa respiração cadenciada de quem dormia. Ele mal lançava um olhar de piedade para sua vítima e logo se punha ao trabalho. Estendia a mão para a pasta de couro do embaixador, em geral colocada sobre um móvel, fazia saltar com delicadeza a fechadura e deixava correr os longos dedos nervosos sobre as folhas que surgiam: documentos sigilosos, relatórios, telegramas, cartas com timbres e Estado. Guardava aquelas folhas consigo e ganhava silenciosamente a saída.

No dia seguinte, em qualquer rua do centro de Ancara, entraria no carro de seu senhor, o alemão Moyzisch, e lhe faria entrega das fotografias dos documentos secretos aliados. Assim, por uma centena de vezes, entre 1943 e 1944, Elyesa Bazna, o camareiro do embaixador inglês na Turquia, Sir Hughe Knatchbull-Hugessen, repetiu as incursões ao quarto de dormir do patrão. Nunca foi descoberto: amigos e inimigos ignoravam que aquele homem de pesada fisionomia oriental, com olhinhos de raposa escancarados num alucinado rosto oblongo, era o grande espião Cícero, de quem os aliados sabiam apenas que conseguia transmitir aos alemães, da Turquia, os segredos da guerra.

Elyesa, aos 38 anos, tornara-se um Kavass. É o termo que, na Turquia, designa os servidores de um estrangeiro, principalmente os criados das Embaixadas. Sua educação de serviçal se completara durante sete anos a serviço do embaixador iugoslavo de Ancara, Jankovich. O patrão seguinte foi o adido militar americano, coronel Class.

O conselheiro da Embaixada alemã Jenke, cunhado de Ribbentrop e seu novo empregador, suspeitou de que Cícero lhe abria as cartas.

Cícero estava imerso, já naquele período, no caos que dominou toda sua vida. A família — mulher e quatro filhos — já lhe dava bastantes aborrecimentos para que desejasse outros. Mas para Cícero a ânsia primordial consistia em conquistar mulheres. Para este hobby, no entanto, a natureza não lhe dera o instrumental adequado. Tinha 1,59m de altura e mantinha-se ridiculamente ereto; possuía um crânio pontudo e, no conjunto, era um homem extremamente feio. Mas desprendia, em virtude de uma pose artificialmente rígida, uma espécie de magnetismo que atraía certo tipo de mulheres.

Passará para o serviço do embaixador inglês, Sir Hughe Knatchbull-Hugessen. Tinha sido recomendado por uma bela governanta, com quem mantinha relações amorosas.

É incrível como Cícero conseguia a proteção das mulheres, em sua carreira. Agora, sua grande aspiração, a espionagem, tornara-se irresistível. Decidiu oferecer seus serviços aos alemães. O destino colocou-o diante de um personagem de refinada astúcia, que se transformou em seu anjo negro por toda a vida: o vienense Moyzisch, aparentemente adido comercial junto à Embaixada alemã dirigida por Von Papen, em Ancara, mas, na realidade, coronel das SS ou da GESTAPO, nunca se soube com precisão.

Cícero começou a passar a Moyzisch o material fotografado durante a noite, no quarto do embaixador, quando este dormia sob o peso da fadiga e das garrafas de uísque. Os relatórios de Moyzisch a seus superiores logo se revelaram interessantíssimos.

Depois da guerra, Cícero inventou motivos ideológicos, mas a verdade é que bancou o espião porque amava as mulheres. Se não contasse com o dinheiro que Moyzisch lhe dava, em pagamento por seus préstimos, não poderia sustentar suas amantes. A vaidade dom-juanesca tornara-o cego. Houve, a esse propósito, um episódio revelador. Um dia, entrou em uma boutique, e ali encontrou Moyzisch, seu corruptor. Ao lado do austríaco, achava-se uma bela mulher. Moyzisch lançou-lhe olhares furiosos: sabia que era absurdo para um camareiro freqüentar uma loja daquelas, e teve medo de que o seu associado despertasse suspeitas. Mas Cícero abordou-a, conversou com ela, ignorando os gélidos olhares do outro. 0 episódio foi ainda mais grave pelo fato de que aquela mulher, Cornelia Kapp, secretária de Moyzisch e filha de um cônsul alemão, era agente do serviço secreto americano e descobriria, no futuro, a identidade de Cícero, condenando-o à inatividade.

Cícero sentia-se profundamente fascinado pelo embaixador Sir Hughe. Nunca se compreendeu a verdadeira natureza das relações que uniam os dois homens. Era ainda mais misteriosa que as com Moyzisch. Cícero cuidava dele com a atenção de um amante, experimentando, ao mesmo tempo, o prazer de enganá-lo, como jamais outro homem foi enganado.

É certo que Cícero invejava o embaixador. Sir Hughe era tudo aquilo que ele gostaria de ser: alto, bonito, desembaraçado, aristocrático. Sua desforra contra Sir Hughe era noturna. Humilhava-o em silêncio, quando entrava na ponta dos pés no quarto e lhe roubava os documentos.

Aventou-se mesmo a hipótese de que entre os dois homens, camareiro e embaixador, a relação de amizade havia atingido um limite tal, que nenhum dos dois, na defesa de seus interesses particulares, guardava qualquer prudência elementar. Por que o embaixador nunca se defendeu ou tentou explicar sua desventura? Teria algo a esconder?

Segundo outra hipótese, não se tratava nem de um sono profundo do embaixador, nem de corrupção: o embaixador pura e simplesmente teria passado a Cícero os documentos, para que os mostrasse aos alemães, a fim de que estes se atemorizassem diante do testemunho da superioridade aliada.

A farinha do diabo

Se os alemães estavam perplexos, os aliados, que conheciam a exatidão dos informes roubados, estavam furiosos.

A desmancha-prazeres foi uma mulher. Moyzisch não conseguia mais suportar sua secretária, Cornelia Kapp, porque era confusa e desatenta, cometia uma infinidade de erros no trabalho e, à menor admoestação, explodia em crises histéricas. Cornelia fugiu na sexta-feira santa, 6 de abril de 1944: disse que iria encontrar-se com o pai em Budapeste, mas na verdade dirigiu-se ao Cairo. Ali, revelou aos seus superiores quem era Cícero: não podia ser senão um doméstico da embaixada inglesa.

A fuga de Cornelia havia desmascarado o camareiro espião. Agora, ele esperava ser preso de um momento para outro. Não lhe restava outra alternativa senão desaparecer também. Disse a Sir Hughe que pretendia demitir-se. Então o diplomata fez-lhe a última afronta. Respondeu-lhe que isso não lhe dizia respeito e que se dirigisse ao mordomo. A 30 de abril de 1944, Cícero deixava
a embaixada.

Foi importante a atividade de Cícero como espião? Bastante, embora não tanto como pretendem alguns. Ele forneceu, principalmente, os dados sobre a operação OVERLORD que, porém, foram levados a sério pela metade. Mas o seu valor como espião consistiu, principalmente, no pânico que provocou no campo aliado, quando fez sentir aos ingleses e americanos que seu bunker de segredos não passava de uma casa com paredes de vidro.

Suas aventuras subsequentes foram melancólicas. Começou uma vida absurda. Primeiro tornou-se comerciante de carros usados. Desperdiçou uma avalanche de dinheiro. E fez bem, porque logo se descobriu que a farinha do diabo estava estragada. Os alemães haviam pago seus serviços com esterlinas falsas. A um certo momento da guerra, os nazistas acalentaram a idéia de provocara queda da esterlina, jogando nos mercados neutros milhões de esterlinas falsas. Depois desistiram da idéia, usando a moeda falsa para finalidades menores: por exemplo, o pagamento gigantesco feito ao agente Cícero.

Em maio de 1945, o serviço secreto americano na Áustria foi informado de que os camponeses da zona do Traun (afluente do Danúbio) haviam pescado notas bancárias na água. Os agentes fizeram pesquisas e o rio devolveu 20 milhões de esterlinas. Nos campos de concentração, os americanos descobriram os responsáveis pela operação das libras esterlinas. Estes confessaram: durante a guerra tinham sido fabricados 150 milhões de esterlinas. 300 mil foram parar nos bolsos de Cícero.

Assim, o astuto kavass, que acreditou estar fazendo uma fortuna ao embrulhar Sir Hughe , descobriu ter sido também ludibriado por Moyzisch. Foram seus dois demônios familiares, os duendes de sua vida. Cícero agora se julgou grande: tinha inaugurado uma empresa de construções e estava edificando um luxuoso hotel, estilo Hilton, com subvenções estatais. Era visto freqüentemente em almoço de negócio com altos funcionários do Estado turco.

Nos bancos se difundiu a inquietação: estavam circulando esterlinas falsas. Na Suíça foi recuperada uma boa parcela, de um comerciante turco. De pagador a pagador, chegou-se finalmente a Cícero. A polícia irrompeu em seu escritório de Bursa. Cícero foi por vezes ingênuo, mas jamais lento para compreender. Bastaram-lhe algumas frases para perceber a verdade: estava completamente arruinado. Não tinha um centésimo de dinheiro bom. A complementação da sua desgraça ocorreu nessa mesma noite: Aika, a sua amante grega, fez as malas e o abandonou.

Cícero contou a estória das esterlinas falsas de uma maneira diferente. No início, ele teria sido pago pelos seus serviços, com moeda boa. Moyzisch lhe entregou, em diversas parcelas, um milhão de liras turcas. Mas, quando a Turquia entrou na guerra ao lado dos aliados, o pessoal alemão foi internado na Embaixada, e Moyzisch mandou chamar Cícero. Ele não queria ir, foi Aika quem o convenceu: “Eles fizeram a tua fortuna, poderão te ajudar ainda mais”. Moyzisch propôs uma troca: os alemães tinham na Embaixada uma quantidade de esterlinas, que não podiam trocar; não pode ria Cícero fazer o favor de trocá-las por liras turcas? Assim, Cícero restituiu a Moyzisch 600 mil liras turcas, que recebera dele e, em troca , recebeu as 50 mil esterlinas da catástrofe.

O complexo de pinóquio

Será verdade? Cícero era mestre em inventar, de vez em quando, novos detalhes de sua estória, para fabricar uma biografia heróica. Mas talvez, neste caso, tenha sido sincero. Por outro lado, não faz muita diferença. Ludibriado com o dinheiro falso, Cícero passou a ser, certamente , o espião mais enganado do século: tinha sido o Pinóquio, que sepultara os sacos de ouro no campo dos milagres, esperando que florescesse a árvore das moedas, e o gato Jenke e a raposa Moyzisch levaram tudo embora.

Ficou com esse complexo por toda a vida. Sentia-se uma vítima e, em qualquer pessoa que encontrasse, procurava seu Sir Hughe, temendo, no entanto, encontrar um novo Moyzisch que o enganasse. A 18 de outubro de 1950, um deputado perguntou à Câmara dos Comuns se era mesmo verdade que documentos secretos haviam sido subtraídos, durante a guerra, da Embaixada inglesa na Turquia. O ministro do Exterior, Bevin, revelou pela primeira vez a grandeza de Cícero: “Nenhum documento foi subtraído, durante a guerra, da embaixada de Sua Majestade em Ancara, mas as pesquisas sobre os fatos a que se refere revelam que o camareiro do embaixador conseguira fotografar um grande número de documentos secretos, e vender os filmes aos alemães”.

Sir Hughe falou apenas uma vez, em seu estilo aristocrático e fez o último insulto a Cícero: “O nome de meu camareiro era Elias. Não consigo recordar seu sobrenome”. Cícero o destruíra, mas o diplomata mantinha em relação a ele o seu altivo desprezo.

Outro grave golpe foi infligido por Moyzisch. O coronel de seu ninho de águia em Innsbruck, fez publicar um livro que relatava toda a estória e que obteve enorme sucesso: OPERAÇÃO CÍCERO. Assim, Cícero descobre, com furor, que pela segunda vez Moyzisch triunfava e se enriquecia à sua custa. O máximo de humilhação foi descobrir, através do livro de seu inimigo, o nome com o qual a História iria recordá-lo: Cícero jamais soubera chamar-se assim. Moyzisch conta que aquele nome de código lhe fora dado por Von Pappen, em 31 de outubro de 1943: “Chamá-lo-emos Cícero, porque nos fornece documentos eloquentes”. Mais tarde, em sua costumeira megalomania, Cícero inventou que o nome lhe fora dado por Hitler, com esta motivação: “Cícero foi o mais inteligente dos romanos, por isso chamo Cícero ao mais inteligente de meus agentes”.

Desta vez, Moyzisch causou-lhe mais amarguras que da primeira. Cícero ergueu-se de repente. Sentia-se um herói histórico. Esperava poder desfrutar, pelo menos de segunda mão, a celebridade que Moyzisch lhe concedera. Soube que estavam rodando um filme sobre a sua estória, com o ator James Mason. Procurou o diretor Mankiewicz, que o fez expulsar: “Não é Cícero. É um doido”. Recaiu no esquecimento por longo período e foi redescoberto por um jornalista francês.

Cícero não tinha paz. Correu o mundo dos editores apresentando memórias e escrevendo livros, deixando-se regularmente ludibriar com relação aos direitos autorais. Não conseguia ler os contratos, era muito orgulhoso para admitir que não compreendia as línguas, e muito desconfiado para se servir de um advogado; preferia deixar-se enganar. Abandonou por um momento o ódio por Moyzisch, que justificava sua vida, e sua nova ovelha negra passou a ser um editor de nome Ferenczi: por um certo período, a ele atribuiu todos os seus males. Agora era um pobre coitado. Vivia quase na miséria, por todos os cantos da Europa, com Esra, sua mulher, e os quatro filhos que ela lhe dera. Estava sempre trabalhando em algum memorial, no qual inventava novas estórias; no mesmo livro repetia diversas vezes a mesma estória, para encompridá-lo, com a astúcia dos velhos escritores de folhetins.

Em 1968, apresentou-se num programa de televisão: encontrava-se, então, na Alemanha, dizia-se paupérrimo, e reclamava do governo alemão 250 milhões de marcos por seus serviços durante a guerra, mal pagos pelas esterlinas falsas de Moyzisch.

Apresentava-se agora gorducho, olhinhos vivos, dois dentes apenas na boca vazia, um terno marrom de confecção barata, o colarinho enrugado sobre uma gravatinha borboleta. Morava em um apartamentozinho em Munique, com os anônimos vizinhos Muller e Kessler, que certamente nem imaginavam viver ao lado da História. Escutava discos de Rita Pavone e colecionava horríveis recordações turísticas; gostava de demonstrar seu talento no canto lírico. Aos domingos passeava com a família pelas ruas ensolaradas. Ninguém o reconhecia.

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