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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Os infiltrados da ditadura


Há 40 anos eles guardam segredos. Eles fingiram ser militantes de esquerda. Agora, os documentos do Cenimar revelam quem eram os informantes da ditadura militar 

As organizações de esquerda passavam por grandes dificuldades no segundo semestre de 1969. Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) no final do ano anterior, o governo militar ampliou os instrumentos legais de perseguição às organizações que combatiam a ditadura. As prisões de militantes levavam os grupos armados a tentar recrutar mais gente. Em outubro de 1969, um homem ofereceu serviços de bombeiro hidráulico na Administradora Bolívar, uma imobiliária de Copacabana. Disse chamar-se Luciano e conseguiu trabalho com a responsável pela empresa, Maria Nazareth Cunha da Rocha. Bom de conversa, falava de política enquanto fazia os consertos nos encanamentos. Nazareth gostou do sujeito. Mais ainda quando ele disse que estivera preso por ter participado de atividades contra o golpe militar.

Poucos dias depois, em tom confidencial, Nazareth perguntou se Luciano gostaria de fazer parte de uma organização de luta armada. A imobiliária Bolívar era, na verdade, uma espécie de condomínio de várias organizações da luta armada. Reunia a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a Frente de Libertação Nacional (FLN). No topo, de acordo com Nazareth, estava Carlos Marighella, líder máximo da Ação Libertadora Nacional (ALN), que seria morto em São Paulo poucos dias depois, em novembro de 1969. Ela convidou Luciano a integrar um grupo de homens “dispostos a tudo”, para realizar operações de assalto e sabotagem. Sem titubear, Luciano respondeu que sim. Militante experiente, na faixa de 40 anos de idade, Maria Nazareth não sabia, ao fazer o convite, que era enganada. Luciano, o homem que se apresentou como bombeiro hidráulico, era um agente do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar.

Na vida real, Luciano se chama Manoel Antonio Mendes Rodrigues. Uma ficha dos arquivos do Cenimar descreve Manoel Antonio, ou “Luciano”, como um agente remunerado que teve conexões com assaltos a banco e contatos em várias organizações da luta armada, como FLN, VPR e MR-8. No serviço secreto da Marinha, consta que ele mantinha contato com vários oficiais.

O Cenimar grampeou os telefones da Administradora Bolívar. Os informes da imobiliária eram transcritos à mão em “folhas de trabalho” do serviço secreto. A infiltração de Luciano nos grupos que operavam na Administradora Bolívar coincide com a prisão de vários militantes. Dos arquivos do Cenimar, é possível inferir que ela foi fundamental para a obtenção de informações que levaram a essas prisões.

Um exemplo: em 26 de novembro de 1969, os espiões descobriram que o militante Salathiel Teixeira Rolim viajara do Rio para São Paulo e Curitiba num carro modelo JK, verde, placas GB Z0 5575. Ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Salathiel entrou para o radical PCBR no fim da década de 1960. Depois de rastreado pelo Cenimar, foi preso em janeiro de 1970. Torturado, deu informações que, na avaliação de antigos aliados, contribuíram para a captura de dirigentes do PCBR. Em 1973, depois de sair da cadeia, Salathiel foi morto por militantes do PCBR, sob a acusação de que traíra o partido na prisão.

A infiltração de Luciano resultou também na espionagem contra um dos mais importantes dirigentes da VPR, Juarez Guimarães de Brito. Juarez entrara em 1968 para o Comando de Libertação Nacional (Colina), organização a que pertenceu a presidente Dilma Rousseff. Em julho de 1969, integrava a VAR-Palmares, organização oriunda da fusão entre Colina e VPR. Foi Juarez quem comandou no Rio de Janeiro o assalto ao cofre de Ana Capriglione, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Trata-se do assalto mais bem-sucedido realizado por um grupo de esquerda durante a ditadura. Ele rendeu US$ 2,6 milhões aos assaltantes.

No dia 13 de abril de 1970, Luciano relatou aos chefes do Cenimar que estivera com Juarez num encontro com Maria Nazareth. Ele telefonou outra vez ao Cenimar no dia 16, para informar que Juarez tinha um encontro no dia 18 com outro militante da VPR, Wellington Moreira Diniz, na Rua Jardim Botânico, numa esquina com a rua que “tem a seta indicando Ipanema” (leia a reprodução abaixo).

Manoel Antonio Rodrigues: Bombeiro informante do Cenimar
Infiltrado num esconderijo da esquerda como encanador, ajudou a desmantelar organizações de esquerda como PCBR, MR-8, FLN e VPR

"Sempre fui ligado à esquerda e estive entre os militares que defenderam a posse de João Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros. Eu era do Corpo de Bombeiros de Nilópolis. Fui preso e solto algumas vezes. Na última delas, em 1969, fiquei na Ilha das Flores, no Rio, onde fui barbaramente torturado durante dois meses. Fui espancado, enfiaram agulhas embaixo das minhas unhas e arrancaram unhas dos meus pés. Chegaram a ameaçar abrir meu crânio com talhadeira e marreta. Até um punhal enfiaram no meu ânus. Aceitei colaborar porque não suportava mais tanto sofrimento. Passei informações, revelei dados sem muita importância. Mantive contato com Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Eu era da FLN quando fui torturado. Algumas vezes fui acusado de ser infiltrado, mas tinha avisado o (Joaquim) Cerveira (chefe dele na FLN) sobre minha situação, e ele me defendeu de ser justiçado."

A direção da VPR não sabia, mas Wellington estava preso desde o dia 11 de abril. No dia 18, os militares o levaram ao encontro com Juarez. No horário previsto, Juarez e sua mulher, Maria do Carmo, chegaram. De imediato, foram cercados por homens armados. Houve tiroteio – e Juarez se suicidou com uma bala no ouvido. Maria do Carmo foi apanhada viva.

“Não pesa na minha consciência a morte de companheiros”, diz um infiltrado
ÉPOCA encontrou Manoel Antonio Mendes Rodrigues, o Luciano, no bairro de Guaratiba, no Rio de Janeiro. Coronel reformado da Polícia Militar, ele confirmou todas as informações que constam dos documentos do Cenimar. Disse que passou a colaborar com a Marinha depois de preso e torturado. Afirmou também que teve três filhos com uma militante de esquerda, professora da Escola de Belas-Artes, no Rio. Entrou com um processo na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e foi considerado perseguido político. Não pediu reparação financeira. “Não pesa na minha consciência que algum companheiro tenha sido morto por minha causa”, afirma Manoel Antonio.

Esse tipo de atitude fria e desapaixonada não deve gerar espanto quando se leva em conta o treinamento rigoroso que recebiam os agentes do Cenimar. Para preservar suas fontes de informação, era preciso que os agentes mantivessem a discrição e o silêncio perante os demais organismos do governo e da repressão. Um caso que ilustra bem essa característica foi vivido em 1968 pelo agente Gilberto de Oliveira Melo, na época com 26 anos.

Gilberto havia sido infiltrado pelo Cenimar em um dos principais pontos das agitações políticas do Rio de Janeiro nos anos 1960, o restaurante estudantil Calabouço, um ponto de concentração dos secundaristas cariocas. Ele participava de protestos e foi preso pela Polícia Militar numa passeata. Na cadeia, recebeu murros na cabeça e no abdome.Fiel às normas de segurança dos militares, nada disse sobre sua relação com a Marinha. Depois de solto, ele começou a sentir tonteiras e lapsos de memória. Esses problemas foram descritos num documento assinado pelo diretor do Cenimar, capitão de mar e guerra Fernando Pessoa da Rocha Paranhos, endereçado ao ministro da Marinha (leia a reprodução abaixo).

Gilberto de Oliveira Melo: O marinheiro e agente duplo
Falso estudante, ajudou a monitorar manifestações no Rio de Janeiro em 1968. Ele afirma que não se arrepende de nada do que fez e faria tudo de novo


Entrei na Marinha para fazer o serviço militar em 1961 e me transformei em soldado profissional. Fui escolhido para o Cenimar porque tinha excelente disciplina e não questionava ordens. Eu era louco por realizar ações, principalmente as mais perigosas. Passava os dias entre os estudantes, jogava pingue-pongue, almoçava no restaurante e até frequentava algumas aulas. Cheguei a namorar uma colega que estudava farmácia. Vi o momento em que (o estudante) Édson Luis foi baleado e morto. Ele não atendeu a meus gritos para que se deitasse no chão e continuou jogando pedras na polícia. Simpático, não era comunista nem revolucionário. Na cadeia fui torturado e não podia dizer que era infiltrado. Fazia parte do disfarce resistir até que outro agente avisasse o Cenimar. Meus relatos eram feitos à mão todas as noites. Não me arrependo de nada. Cumpri meu dever como militar e, se fosse chamado hoje, faria tudo novamente, mesmo com quase 70 anos.

Paranhos relatou que Gilberto era fuzileiro naval e se tornara agente do Cenimar em outubro de 1967. Elogiou sua atuação na identificação de líderes do movimento estudantil. Examinado pela Marinha depois de apanhar da PM, Gilberto disse que se ferira numa briga, atitude classificada por Paranhos como “altamente elogiável quanto à segurança”. Os arquivos do Cenimar guardaram cópias de três fotos do momento em que Gilberto foi preso na manifestação. Têm também cópias de título de eleitor e carteiras de identidade, trabalho e de estudante do Instituto Cooperativo de Ensino. “Atua na área estudantil, é remunerado. Trabalhando na UFRJ como arquivista”, diz o documento.

O infiltrado Gilberto ficou incomodado com o vazamento dos documentos secretos 
ÉPOCA encontrou Gilberto de Oliveira Melo no Rio de Janeiro. Ele mora numa casa cheia de grades, parecida com um bunker, no bairro da Penha. Gilberto leu os documentos do Cenimar e confirmou todas as informações que constaram deles. Reclamou do vazamento dos arquivos secretos e se mostrou preocupado em dar entrevista sem autorização da Marinha. Aceitou conversar com a reportagem, mas não quis ser fotografado. Aos 69 anos, está na reserva como cabo dos Fuzileiros Navais. Ao longo da conversa, mostrou-se um abnegado agente secreto, disposto a qualquer sacrifício em nome do Cenimar. Gilberto brincou dizendo ser “meio doidinho” por causa das sequelas que precisou tratar. Vive desconfiado – e teme retaliação dos militantes de esquerda.

Uma atitude também frequente entre os ex-infiltrados é oposta à de Gilberto. Ele teme retaliação. Outros chegam a exigir reparação e a pedir indenização do governo por ter sido perseguidos durante a ditadura. Uma história surpreendente é de Vanderli Pinheiro dos Santos. Quem consulta os arquivos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça descobre que Vanderli foi indenizado pelo Estado em cerca de R$ 234 mil e recebe um benefício mensal de pouco mais de R$ 3 mil. À comissão, ele afirmou ter entrado para o PCB em 1964, ter treinado guerrilha, mas ter desistido da militância em 1969. Segundo ele, quando tentava se engajar no Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, foi preso e torturado no Batalhão de Polícia do Exército em Brasília, acusado de subversão. Depois de solto, afirmou, não conseguiu emprego e decidiu mudar para o Rio de Janeiro, onde ficou detido por 30 dias para “averiguações”.

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