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quarta-feira, 11 de julho de 2012

"Deixei meu pai coberto de sangue", relata sobrevivente de "limpeza étnica" em Haia


O primeiro depoimento em Haia descreve o horror da limpeza étnica contra os bósnios muçulmanos cometida pelas tropas do ex-general sérvio Ratko Mladic

Mulher morta no ataque à Sarajevo 
A "limpeza étnica", termo técnico que ilustra a imposição pela força da homogeneidade de um território, ganhou corpo nessa terça-feira (10), de forma vívida, durante o julgamento de Ratko Mladic. E foi com as declarações da primeira testemunha de acusação, Elvedin Pasic, um bósnio muçulmano de 34 anos que sobreviveu quando adolescente à execução de 150 civis pelas mãos de soldados sérvios, em 1992.

Em uma declaração tão descritiva que os fatos pareciam se desenrolar na sala de audiências, Pasic, que emigrou para os EUA, lembrou a fuga que custou a vida de seu pai e seu tio na Bósnia. Acusado de genocídio e crimes de guerra e contra a humanidade, Mladic escutou com atenção o depoimento no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (TPIY) em Haia.

Pasic evitou olhar para ele. Depois de dois atrasos provocados por erros da promotoria, que não enviou a tempo à defesa cerca de 7 mil documentos, a chegada do depoimento da testemunha representou o início definitivo do processo contra Mladic. Nascido na localidade bósnia de Hrvacani, as lembranças de Pasic passaram da vida em uma comunidade "100% muçulmana, onde crianças de todas as etnias brincavam no colégio próximo e se realizavam as diversas festividades religiosas", à tragédia da separação e a morte do progenitor.

Sereno no início, e chorando abertamente na medida que o relato derivava em tragédia, falou de seus anos no povoado. "Passávamos muito bem. Não havia animosidade entre os moradores", relatou. Um dia, sem aviso prévio, a situação se alterou. "Chegaram tanques e comboios militares de tropas sérvias [o comandante em chefe era Mladic] e começou o ataque. Foi surreal. As bombas caíam sobre as casas e minha mãe nos disse para cobrirmos a cabeça", afirmou.

Quando a situação se tornou insustentável, ele abandonou seu lar junto com os irmãos por uma janela traseira. "Mamãe nos disse para evitarmos nos expor às balas na rua. Ao cruzar uma campina correndo, continuou a chuva de balas", afirmou. O povoado ficou deserto, com exceção de cinco idosos que foram assassinados. "Lembro do cheiro dos corpos quando voltamos e os enterramos", contou.

A fuga de Pasic e sua família seguiu o padrão descrito por outras testemunhas da guerra dos Bálcãs. As mulheres e as crianças acabaram separadas dos homens entre 15 e 60 anos. Muito poucos se reencontraram no final da contenda. Os Pasic se refugiaram em um povoado croata onde foram bem tratados. Quando os moradores se renderam aos soldados sérvios, voltaram para sua casa em Hrvacani. No caminho, "um soldado sérvio nos gritou para que fôssemos para a Turquia porque estávamos na Sérvia e não era nossa terra".

Um dos motivos dados para explicar o nacionalismo exacerbado de Mladic é seu desejo de vingar o que considera séculos de ocupação turco muçulmana da sérvia. Por isso insultava os bósnios muçulmanos durante a guerra, chamando-os de turcos.

Pasic não conseguiu evitar o choro ao lembrar a despedida de seus pais antes de separar-se para sempre: "Se durante nosso matrimônio fiz algo que a feriu, perdoe-me. Não sei o que será de nós", disse seu pai.

A tentativa posterior de escapar pelas montanhas bósnias foi penosa. "Éramos um grupo de cerca de 200 homens e dez mulheres. Papai me disse para não soltar sua mão enquanto passávamos por povoados destruídos. Havia gente que caía, mas não podíamos parar para os recolher." Quando se renderam, desceram pela colina e caíram nas mãos dos sérvios. "Passamos por um túnel e um homem pôs sua camisa em um pau, como se fosse uma bandeira branca de rendição. Depois saímos do corredor. Eu usava um abrigo escuro muito pesado e grande, e tinha tanta sede que tentei beber as gotas de água que vazava pelas rachaduras."

Depois de sair do túnel, os fugitivos foram obrigados a se deitar de boca para baixo em um charco. "Assim eu fiquei junto de meu tio e meu pai. Um soldado lhe bateu porque usava botas que pareciam militares. Ele disse que eram deles, de caçador. Perguntaram se estava com alguém de sua família, respondeu que não e lhe bateram de novo. Ainda posso ouvir seus gritos. Então chamaram as mulheres e as crianças. Eu não queria ir, mas papai me disse para ir. Que era pequeno e devia me salvar. Apesar de me proibir de olhar para trás, notei que estava coberto de sangue."

Pasic foi levado depois a Graboviuca, onde lhe bateram e de onde saiu em um ônibus com as demais mulheres e crianças. "Ao partirmos, uma mão nos disse adeus do segundo andar da escola que ocupávamos. Meu pai e meu tio estavam ali, presos com o resto dos homens. Na noite anterior à deportação, tive medo de subir para vê-lo. Ainda vejo essa mão em meus sonhos", contou soluçando.

Concluída sua declaração, chegou a vez da defesa. A acareação correu a cargo de Branko Lukic, advogado de Mladic. Muito mais tranquilo, Pasic respondeu a perguntas sobre a imagem do exército sérvio entre seus vizinhos muçulmanos. "Antes da guerra não era ruim", afirmou. De fato, relatou Pasic, seu irmão estudou na academia militar.

O letrado Lukic quis saber assim mesmo se voltou a ver seu pai e tio. "Não, nunca mais", foi a resposta rápida. E sobretudo se conhecia um documento que supostamente os não sérvios deveriam assinar para certificar sua submissão ao exército sérvio. "Não o vi, mas sei de uns vizinhos muçulmanos que o assinaram e foram queimados do mesmo modo na mesquita", disse a testemunha.

Depois de quase duas décadas escondido da justiça, Mladic nega as acusações contra ele. Como autores dos crimes indica as tropas que atuaram por sua conta. A acareação de Pasic terminaria nesta terça-feira.

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